Firmo José Rodrigues - Biografia por Dunga Rodrigues

 

Maria Benedita Deschamps Rodrigues (Dunga Rodrigues)

 

A Diretoria do Instituto Histórico de Mato Grosso determinou que, cada membro dessa entidade, falasse sobre o seu patrono.

Aproveito a “deixa” para falar do meu patrono, como pai. Um pai todo especial, que não precisava revestir-se de autoridade para ser respeitado. Muito pelo contrário: em casa se tornava um camaradão.

Lembro-me ainda de que aos três anos de idade, comi um tal bolo de farinha de mandioca, feito por ele, quando brincávamos de quitute. E a sua camaradagem foi crescendo, embora eu me arranchasse, desde os quatro anos, em casa da minha avó paterna, apesar de o meu quartel-general continuar em casa de meus pais.

Em casa de minha avó: eu me prendia pela boca: arroz sem sal, feijão moreninho, comida apimentada.  Em casa dos meus pais: as brincadeiras e invencionices da idade. Fazíamos teatrinhos, com peças escritas por meu pai. Eram do tipo Revista, ao que se seguia um ato de variedade: canto, danças e declamação.

Nem faltava uma apoteose, abrindo-se a porta que dava para a apertada área, onde era montada a cena paisagística do espetáculo. Os artistas eram arrebanhados na vizinhança, filhos de Vicente Bueno, netos de Luís Pedroso de Barros, até os filhos do Sr. Benedito Leite de Figueiredo, que moravam na proximidade da igreja São Gonçalo.

As cançonetas infantis, que o musicista Eustórgio Wanderley publicava na revista O Tico-Tico, eram todas contadas em nosso teatrinho. Garotos que participavam do elenco teatral foram figuras de projeção no Exército Nacional, principalmente no período revolucionário da Nação: coronel Francisco Bueno Deschamps, Coronel Ivo de Arruda e o Coronel Lucídio de Arruda. Este último fazia números de piano.

Estas tertúlias eram infalíveis em duas datas do ano: no Natal e no dia 11 de outubro, esta com a denominação de “Festa do Tatu”, data natalícia da Olga, minha irmã e afilhada: ela era tão pequena, que os irmãos apelidaram-na de Tatu e Tatuzinho. Depois, numa certa época, ela deu um pulo e se tornou a mais alta da família.

Certa vez, meu pai deu-nos uma surpresa: no ato variado, apareceu vestido de mulher e dançou um samba. Minha mãe teve um “chilique”, chorou e dizia que aquilo era uma profanação, pois o traje era de sua finada irmã. Felizmente, tudo foi apagado num átimo.

Quando não havia sol, mas o calor continuava, meu pai punha-nos por diante, numa caminhada até o Coxipó, onde já prevenidos, íamos caindo na água, e de lá só saíamos quando chegava o “Almofadinha”, tipo de condução coletivo, chamado por um dos raros telefones da vila, instalado na casa do Sr. Totó Dorilêo.

De uma feita, meu pai resolveu fazer uma visita a um antigo colega de ginásio, morador do Coxipó. Para lá nos dirigimos, mas o intuito de sermos agraciados com um cafezinho torrado em casa, falhou. Ledo engano, deparou-se-nos uma mesa com vasilhames cheios de frutos vários.

Conversa vai, conversa vem, o “Almofadinha” chegou.  Já rodando de volta, alguém comentou:

  • Vocês repararam como as bocaiuvas sumiram?
  • Aqui está uma, disse alguém.
  • Aqui outra, Aqui outra.

E elas foram surgindo, pois haviam sido surrupiadas em surdina.

  • Falta uma! Disse alguém, que as havia contado, pois eram oito,
  • Aqui está ela, disse meu pai, tirando, também, o seu furto do bolso.

 

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Os festejos do Sr. João Romão eram infindáveis em suas comemorações: missa de madrugada, missa solene, procissão, quermesse, baile, café da manhã, quebra torto (isto é, desjejum), almoço, jantar. A todas estas cerimônias tínhamos o dever de comparecer, pois por assim dizer, representávamos convidados de honra.  Nesses festejos eram infalíveis: a almôndega e a linguiça cobertas com ovos.

A Helena, minha irmã, sempre tinha piada para o momento, e dizia:

  • Qualquer dia nós todos voltaremos de lá cobertos com ovos.

 

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Na Rua 13 de Junho, em frente ao Tanque de Bugres, lugar onde hoje se ergue um prédio do governo, foi inaugurado um cinema. O primeiro a aí comparecer foi o meu pai, com toda a sua troupe. Isso gerou um forte comentário: Onde é que o Firmo achou de levar os filhos?

Pois, na realidade, o cinema era apenas para disfarçar ali a instalação de um grande cabaré clandestino. Os filmes eram só para amenizar a agressividade da instalação ostensiva.

 

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Havia muita festa de roça de grande repercussão na cidade. Ao inquiri-lo por que não nos levava? Respondia:

  • Lá, vocês passarão fome; a moda de servir é um pouco rústica, cada qual se serve no mesmo panelão e com o próprio talher com o qual se estava comendo.

As reuniões festivas, os banhos no rio Cuiabá, ou no Coxipó, as fogueiras de S. João, e de S. Pedro, e os demais santos fogueteiros, a chácara do Seu Malaquias à beira do rio Cuiabá, jornada à razia da Serra da Chapada, onde me levou a conhecer Seu Manuel Onça, que completara 100 anos de idade, também caminhávamos nos arredores de nossa cidade, que então, se limitava até o Esquadrão de Cavalaria do Estado, sediado onde hoje se erguia o Colégio Estadual de Mato Grosso (atualmente Liceu Cuiabano “Maria de Arruda Müller”). Naquela época, marcava o sítio onde o movimento se delimitava e começava a área das grandes chácaras.

Assim era o meu pai: o amigão, que só ganhou como nome de rua um beco sem saída, contendo apenas uma casa na esquina da Vila Isabel.

Felizmente, alguém roubou a placa. Foi melhor assim. Digo isto revoltada, pois é uma ingratidão injustificável para quem sempre trabalhou em prol de sua terra.

Sei que nada levamos desta vida, mas... para o povo que homenageia uma mulher de rua, com estátua, nomes e outros etc., esquecer um homem de trabalho honrado e dedicado ao seu berço natal, é algo sintomático.

 

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Meu pai costumava incentivar os filhos a ter sempre uma reserva de dinheiro, para qualquer eventualidade, como um caso de doença, uma viagem inesperada, ou mesmo, um preparativo para o enxoval de noivado. Não admitia que alguém o visse usufruindo o dinheiro dos filhos.

Certo dia, notei que a gola do seu terno estava ligeiramente puída (poluída, esfarelada). Adverti-o para trocar o termo. Ele não deu ouvidos. Como sabia de antemão que não aceitaria, também, presentes, fiz um trato com o alfaiate Armínio Albernaz. Encomendei logo seis ternos, nem foram seis, foram oito, pois sabia que o mundo iria desabar sobre a minha cabeça: foram quatro ternos de linho e quatro de casimira.  A cumplicidade do alfaiate Armínio funcionou, pedindo-lhe que fizesse o favor de servir de manequim para um fazendeiro de Poconé, com o seu corpo justo.

Meu pai, que gostava muito do Armínio, fê-lo de bom gosto, e chegava em casa elogiando o bom gosto do fazendeiro.

Quando estes chegaram à nossa casa, o mundo caiu sobre a minha cabeça, mas fingi que dormia um sono profundo, estendida na cama, só acordei quando ele se afastou do quarto.

Sabia que isto iria acontecer, por isso mandei fazer tudo de uma só vez.

 

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Outro drama inventamos com a cumplicidade do Dr. Agrícola Paes de Barros, que determinou uma férias no Coxipó para a Helena, minha irmã, que precisava de um repouso. Porém, o intuito era forçarmos meu pai a tirar umas férias. E lá fomos de cambulhada para uma casa muito confortável, alugada da família Costa Ribeiro.

Vizinhos de um sanfoneiro que, tocando uma só música, fazia baile todas as noites. A política, no Coxipó era acirrada, mas houve um jeito de conciliar os dois partidos. Seu Maurício, o sanfoneiro, tocava uma só música, dividida em duas partes, e no espaço entre o balcão e a porta da rua, cabiam cinco pares apenas. A solução, quando dançavam os Pinheiros, não dançavam os Dorilêos, e vice-versa.

Antes, porém, deste baile, havia na igreja uma reza tirada por seu Vicentinho, um rezador que, ao finalizar o terço, escondia-se atrás da coluna da igreja e condenava em alto e bom som:

  • Prende um cabo e prende um Cristo!

Ao que o povo, sem piedade, justificava dizendo:

  • Amém.

Depois de muita procura, encontrei esta frase em latim, que justificava esta cruel sentença: Pereundeum corbo perendeum Christi. Amém!

Após esta reza, íamos dançar na vendinha do Seu Maurício, ao som da sanfona, onde ele executava a sua música em duas partes, a qual Helena colocou logo uns versos dedicados a ele e à sua mulher, mas as palavras eram trocadas por: hum... hum... hum...

O original seria muito ofensivo:

Viva seu Maurício
Cabeça pela
Vive Siá Virgínia
Com a casa enrugada!

Houve até, em pleno mês de junho, um desfile do cordão dos Coxiponés. Meu pai, de um lençol improvisou a bandeira do clube e, apesar de unido na folia, a política acirrada perdurou, pois uma fila era dos Dorilêos, a outra era dos Pinheiros. Interessante: eles se esbarravam, mas não se misturavam.

 

Produção Literária

Colaborou junto aos Periódicos: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, Pindorama, Mato Grosso, A Cruz, O Correio da Semana, O Estado de Mato Grosso.

Publicações:

  • Bibliografia Matogrossense. Cuiabá, Escolas Profissionais Salesianas, 1944. (Obra em parceria com José Barnabé de Mesquita)
  • Figuras e Coisas de nossa Terra. Cuiabá, s.ed., 1959. 2 vol.
  • A flora em Mato Grosso – RIHGMT, 1905
  • A fauna dos rios de Mato Grosso – RIHGMT, 1905
  • A Cavalhada – RIHGMT, 1906
  • Pe. Manuel Gomes de Oliveira – RIHGMT, 1911
  • Apontamentos Históricos dos Hospitais de São João dos Lázaros e da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá – RIHGMT, 1924
  • Herói no Sofrimento– RIHGMT, 1933
  • O elemento português na Capitania de Mato Grosso – RIHGMT, 1934
  • A Retirada da Laguna – RIHGMT, 1936-37
  • Discurso no Túmulo dos Republicanos Heróicos – RIHGMT, 1939
  • Hospital dos Lázaros de Cuiabá – RIHGMT, 1939
  • Discurso – RIHGMT, 1940
  • A Irmandade do Senhor Bom Jesus de Cuiabá– RIHGMT, 1945-48
  • Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – RIHGMT, 1949-52
  • As Luminárias – RIHGMT, 1945-46

 

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